Jazz, Rex Harris

O primeiro livro sobre Jazz editado em Portugal data do final dos anos 50, Jazz, de Rex Harris (Jazz, Rex Harris, Editora Ulisseia, 1952), e teve tradução meritória de Raul Calado.
Crítico e estudioso do Jazz, Rex Harris mergulha fundo nas origens do Jazz, aos blues, às worksongs, ao ragtime e às marching bands, da escravatura a New Orleans e ao êxodo de New Orleans Mississipi acima, os pioneiros e os primeiros grandes individualistas.

Jazz é um livro onde Rex Harris procura não apenas historiar o Jazz, mas também defini-lo. Logo no primeiro capítulo Rex Harris começa por se inquirir porque é que o Jazz nasceu em New Orleans no final do século XIX, porque é que o Jazz assenta sobre uma estrutura privilegiadamente improvisada e como é que daí resultou a «hot music»; valorizando a herança negra das canções de trabalho na «moldagem de um folclore que mais tarde seria o Jazz». Um folclore, portanto, para Harris, determinado também pelo desconhecimento das formas clássicas europeias. Às canções de trabalho (worksongs) de origem remota nas canções e danças africanas sucederam-se os blues e, por influência dos hinos religiosos ingleses, os espirituais.

Na valorização da improvisação, Rex Harris escreve que a improvisação, «característica do negro», e o ritmo regular que é subjacente a todo o Jazz, originado provavelmente pelo fervoroso bater de palmas e de pés dos actos religiosos negros, contribuíram de forma determinante para o nascimento do Jazz na cidade de New Orleans, para onde afluíam brancos, mulatos, escravos e crioulos de origem mais ou menos confirmada francesa ou hispânica ao longo do século XIX. Muitos destes crioulos, como Jelly Roll Morton, que se dizia de si mesmo o inventor do Jazz, tinham conhecimentos de notação musical ocidental e alguns eram também exímios instrumentistas.

Após a guerra civil (Guerra da Secessão, 1861 – 1865, onde 180 mil «afro-americanos» lutaram pela União. 1865 é a data oficial do fim do esclavagismo nos Estados Unidos da América) ocorreu o fenómeno curioso do aparecimento de inúmeras bandas de metais que «copiavam a música de parada do homem branco» , a que eram adicionadas as primeiras percussões e cordas que, com as tubas, constituíam as primitivas secções rítmicas. Estas marching bands eram utilizadas para todo o tipo de festejos, e muito requisitadas em concorridos funerais, em festejos de um cristianismo com bastante de profano. Sem grandes dados, Harris presume que o facto de muitos negros terem instrumentos musicais se deverá ao fim da guerra, quando clarinetes, cornetas e trombones, instrumentos caríssimos, terão sido deitados para a sucata, e muitos estariam avariados ou desafinados. Terá sido nesta fase, ainda anterior ao dealbar do século XX, que as marching bands introduziram o artifício de mudar o acento do tempo forte para o tempo fraco, oferecendo alguma liberdade de «ornamentação» da melodia aos solistas.    

Harris dedica um capítulo ao ragtime. No caldeirão de culturas que atravessava New Orleans, nascia o ragtime no início de segunda metade do século XIX. Forma musical para piano, o ragtime esteve presente no nascimento do Jazz, e durante algum tempo era até confundido com o Jazz dos primórdios. Aliás, muitos dos temas tocados pelos músicos de New Orleans eram rags: Tiger Rag, Snake Rag, Maple Leaf Rag... O ragtime terá tido origem nos bares de Storyville (o bairro francês de New Orleans, uma verdadeira cidade do álcool, do jogo e da prostituição) e era tocado de igual forma por pianistas negros analfabetos, por crioulos ou mesmo brancos com razoáveis conhecimentos musicais: o autor refere a introdução da tradição composicional europeia e da música clássica com origem nos emigrantes brancos que se estabeleceram em New Orleans.

Harris atribui a origem do ragtime a pianistas negros como uma «arte imitativa do banjo», mas os rags que chegaram até nós pertencem maioritariamente a músicos cultos, naturalmente devido ao seu conhecimento da escrita musical. Muitos destes pianistas ganhavam a vida a escrever rags, por vezes a colocar em pauta rags que outros teriam escrito, e a vender as pautas ou fitas para pianola. A sua forma sincopada foi imediatamente adoptada pelas bandas de rua, e os primeiros grupos com piano tiveram pianistas de ragtime numa forma que se confundia. Os pianistas eram também, naturalmente, os eruditos dessas bandas de New Orleans, embora os sopros fossem as estrelas dos espectáculos devido aos seus dotes como improvisadores.

Num outro capítulo Rex Harris conta como, com o fecho de Storyville, o Jazz se disseminou pelos Estados Unidos, e um outro é dedicado aos «grandes individualistas».

A história de Storyville já foi largamente feita por muitos historiadores, por vezes recuperando lendas e mitos que se transformaram hoje em tradições recuperadas (ou inventadas), e o seu encerramento em 1918 pelo Mayor de New Orleans (obedecendo a directivas do exército) será a mais razoável razão para a expansão do Jazz para norte, e é um capítulo muito interessante no livro de Rex Harris. E para quem imagine que Rex Harris associa a origem do Jazz ao vício, ele esclarece: «o Jazz não nasceu na valeta».

Igualmente interessante se me afigura o capítulo dedicado aos primeiros individualistas. Com efeito, se as marching bands, que afinal tinham origem nas bandas militares, eram formas colectivas - e essa era a tradição da música erudita, em que os músicos se dissolviam no todo orquestral-, o aparecimento do Jazz introduzia uma outra particularidade: os improvisadores, os «individualistas». E, mesmo considerando a tradição de solistas da música clássica, essa (do Jazz) era uma singularidade que o próprio nome de muitas bandas reflectia: King Oliver Creole Jazz Band, Jelly Roll Morton’s Red Hot Peppers, Armstrong Hot Five, Bunk Johnson New Orleans Band, etc.
Sem que o teorize, Harris aponta um dos grandes paradigmas do Jazz que reside no conflito colectivo-indivíduo, e que persiste – digo eu – na sua definição. 

O piano e a influência da música clássica, aliás, «da ortodoxia europeia nos arranjos musicais», são também objecto da atenção de Rex Harris, que polemiza. Para Harris o Jazz de piano – instrumento tardio no Jazz - seria talvez mais apropriadamente chamado de «ragtime de piano», e a maioria dos seus cultores deram origem ao que se chamou de «boogie woogie», excepção feita para Fats Waller, o único pianista que verdadeiramente parece apreciar. E Fats Waller foi inquestionavelmente um personagem singular na História do Jazz.

O capítulo IX é dedicado à influência clássica europeia no Jazz, que se revelou fundamentalmente na música orquestral. Harris declara-se orgulhosamente «purista» no estabelecimento das fronteiras entre o que considera Jazz e as «formas musicais que estão divorciadas da autenticidade», mesmo se atribui valor a outras músicas «hot»: «muito de Henderson, Redman e Lunceford é boa música da sua espécie; a maior parte da obra de Ellington é única como forma musical original; mas não é Jazz no sentido rigoroso»; e mais à frente: «O Jazz – o Jazz tradicional - ainda com muita vida enquanto tocado por homens impregnados da tradição viril  de Nova Orleães ... foi enfraquecido logo que se sentiu a influência da ortodoxia clássica europeia».

Rex Harris contrapõe a música escrita ao Jazz, que define como folclórica: «Ortodoxia contra o instinto, o cérebro contra o coração»; mas a procura da autenticidade do Jazz leva-o ao extremo de questionar a possibilidade de grandes ou sequer médias formações. Idealmente de seis ou sete músicos, a partir do momento em que é necessário acrescentar um instrumento melódico extra ou quando um clarinete é substituído por uma secção de três ou mais instrumentos de palheta, tornam-se necessários trechos de partitura, esvaziando o Jazz da espontaneidade ou oportunidade de improvisação: «o Jazz está irremediavelmente perdido».

Se as orquestras de Fletcher Henderson, Jimmie Lunceford ou Artie Shaw foram capazes até de introduzir inovações, explorando o idioma do Jazz e os seus estudos académicos da música ocidental, para levar aos salões de baile e salas de concertos música capaz de divertir um público maioritariamente branco – e eles foram pioneiros das grandes formações de swing-, Duke Ellington desenvolveu uma música de grande erudição, inclassificável como Jazz ou como música «ortodoxa». Com conhecimentos sólidos da história do Jazz e da música clássica, Ellington desenvolveu uma forma musical singular que combina arranjos luxuriantes com boas improvisações; inquestionavelmente boa música a que – diz Harris – faltou sempre o fulgor do Jazz e onde o verdadeiro sentimento do Jazz estava absolutamente ausente. Inqualificável, para Harris, a música de Ellington é apenas «música de Ellington».

Rex Harris vai mais longe nos efeitos da influência ocidental, também nos solistas, que os impede de tocar Jazz. Num exemplo, Benny Carter é considerado um instrumentista talentoso e inventivo, mas a que lhe falta o calor e impetuosidade dos músicos de Jazz.
Noutra passagem em nota de rodapé (questionada pelo tradutor) Coleman Hawkins é observado como um grande improvisador, traído pelo seu instrumento – o saxofone tenor: «se (os seus dotes de improvisador) tivessem sido canalizados num meio diferente de expressão, por exemplo o clarinete, poderiam ter-lhe garantido um lugar permanente no Jazz».
Se Duke Ellington não tocava Jazz, se o Jazz estava, para Harris, impedido de ser tocado por bandas de mais de sete instrumentos, alguns instrumentos – entre os quais o saxofone tenor(!!!!!) parecem ser também tabu. E dispenso-me de comentar sobre o lugar cimeiro de Coleman Hawkins no Jazz.
Enfim, sobre este capítulo vale a pena comentar que, tendo o autor historiado nas origens do Jazz de New Orleans as influências da música popular negra, a par do ragtime e das marching bands, praticada por músicos instruídos ou com formação musical «ortodoxa», e orquestrada, ainda que com frequência com arranjos incipientes, mas colectiva no caso das bandas de rua, acabe por enjeitar qualquer possibilidade da música escrita no Jazz. A insistência no carácter folclórico, negróide, do Jazz, acrescento eu, menoriza-o.

Os capítulos seguintes referem-se à exploração comercial do Jazz, ao seu desenvolvimento e renascimento, e é no final do capítulo dedicado à exploração comercial que encontramos o bebop (recordemos que o livro foi escrito em 1952), definido por Harris como «um dialecto da língua de Jazz», numa citação do músico e crítico Steve Race. E mesmo se considera muitos músicos de bop simples charlatães, ele parece encontrar no bop – pelo menos - o espírito de contestação ao swing como forma musical estereotipada desinteressante (com algumas excepções para Count Basie ou Chick Webb), mas que não era Jazz. Retomando Race: «Assim o bop, regulando-se de costume por regras de progressão musical relativamente simples (apesar de não tão simples como as do Jazz tradicional), busca desempenhar a sua missão pró ressurgimento da perdida arte da improvisação».

Completando a recensão do livro, Rex Harris exclui a possibilidade de alguém aprender a tocar começando por um professor da escola «ortodoxa», sugerindo que os interessados comecem por ouvir os discos metendo o som na cabeça, e aprendam os rudimentos do instrumento contrariando o método ortodoxo do professor, aprendendo a improvisar ao mesmo tempo que memorizam as melodias até serem capazes de as reproduzir de ouvido.

Jazz de Rex Harris é um livro magnífico, fundamental, escrito por um apaixonado do Jazz que estudou seriamente as origens do Jazz; inevitavelmente datado e polémico, mas que merece ser lido e mereceria ser reeditado.